E os próprios presos avisam a Gaúcha no motim da Penitenciária
Estadual do Jacuí
2008
Luiz Artur Ferraretto
Passa pouco do meio-dia e faz um calor danado, apesar do
ar-condicionado, na redação da Rádio Gaúcha, em Porto Alegre. Enquanto uns,
como eu, ocupam-se com a gravação de reportagens encerrando a sua jornada de
trabalho, outros começam a chegar para o turno da tarde. A maior preocupação de
todos, no entanto, é o fechamento do noticiário das 12h45, o Correspondente Strassburger. É 4 de
janeiro de 1988 e ao microfone, no estúdio, está Armindo Antônio Ranzolin,
discorrendo sobre futebol após o seu tradicional “Alô, amigos” a marcar o
início de todas as suas falas, sejam comentários esportivos ou as aberturas dos
grandes jogos narrados por ele. Toca o telefone e o inusitado transforma tudo
que era, até aquele momento, rotineiro. Alguém se identifica como um preso da
Penitenciária Estadual do Jacuí, o grande complexo prisional localizado em Charqueadas,
na Grande Porto Alegre. Confirmamos a informação com as autoridades. Há um
motim em andamento, o terceiro em menos de seis meses, o segundo em menos de
uma semana.
Recebo a ordem do coordenador de Jornalismo, Cláudio Moretto
– “Te manda, guri!” – e me desloco imediatamente para lá. Foi-se o almoço junto
com a tarde de descanso. O preso já está no ar, conversando com Ranzolin, que
sustenta a entrevista por uns 20 minutos. Futebol cede o espaço para segurança
pública, gols e fintas para vida e morte. Chegando à ponte sobre o rio Guaíba,
parece que a Belina branca da rádio – vejam só, o carro mais moderno e rápido
da emissora na época! – não corre o suficiente. O motorista, no entanto, não
lembro se o Gilson ou o Rochinha, voa baixo sobre o asfalto. Faz um calor
infernal. Menos de meia hora depois já estamos na frente da penitenciária.
Converso com um homem muito nervoso. A esposa dele é uma das reféns. Horas
depois, em uma ação algo desastrada das autoridades ao invadirem a PEJ, ela
estará morta e ele, desesperado. Entro no ar.
Cinco ou dez minutos depois, aparece a jornalista Suê Duarte,
da Rádio Guaíba, um dos baluartes da reportagem de Porto Alegre. Ela chega meio
aturdida, aliás como eu também estou em meio ao caos da falta de informações
que vai marcar as próximas 24 horas. Cedo minhas anotações e Suê, com as mesmas
informações, improvisa um boletim até melhor do que o meu. Fazemos, então, como
sempre, uma cobertura cordial sem as irracionalidades da incessante – e absurda
– busca pela superação, muitas vezes esquecendo que o ouvinte só sintoniza uma
emissora de cada vez. No meio da tarde, sou substituído, já sabendo que, se o
motim persistir, estarei de volta às quatro ou às cinco da manhã.
Amanhece o dia 5, estou de volta e a confusão continua. Quem
comanda a cobertura da Gaúcha é José Antônio Daudt. Na reportagem junto à
penitenciária, estamos a Otília Souza e eu. Um fuquinha, o do Rocha, meu motora
no dia a dia da Gaúcha, foi convertido pelas artes do técnico Francisco Paulo
Bisogno, o Chicão, em um retransmissor dos sem-fio que permitem, nesta fase
pré-celular, alguma mobilidade. Amotinados e reféns, no entanto, estão longe
dali, do outro lado da PEJ, que se estende da RS-401 até as margens do rio
Jacuí. Como fizeram cinegrafistas e fotógrafos durante a madrugada, proponho
alugarmos um barco para chegar por lá. Com dois colegas do jornal NH, de Novo Hamburgo, consigo uma chata
de transporte de areia, que nos leva até a penitenciária de frente para as
águas poluídas do Jacuí. Ali, a cena é de arrepiar. Quando nos aproximamos de
terra, dezenas de soldados da Polícia Militar voltam-se em nossa direção
apontando armas. Ouvimos gritos dos reféns:
– Por favor, vocês são a nossa única chance! Não vão embora!
Vão nos matar aqui!
Falo, sem muito sucesso, usando a traquitana que me serve de
rádio. Como o barco não consegue se manter no mesmo ponto, perco a conexão com
o transreceptor lá na beira da RS-401. As vozes, indefinidas e ao longe, não
saem da minha cabeça, enquanto volto algo desapontado por não poder completar
minha tarefa. Uma lancha de patrulha da polícia, então, nos intercepta e quase
somos presos. O barqueiro fica apavorado, Mostramos documentos e somos, por
fim, liberados. Contrastando com a total desinformação existente e com certo
cerceamento do trabalho da imprensa, o barquinho atulhado de soldados ostenta
um nome curioso: A Democrata.
Horas depois, os jornalistas descobrem o que a população
ribeirinha já sabia. Bastava pegar uma trilhinha pela lateral da PEJ para
chegar sem problemas e sem policiamento às proximidades do prédio onde estão
presos e reféns. Quando lá chegamos, no entanto, agentes de segurança colocam
um ônibus e outros veículos impedindo a visão dos repórteres. Um chega a
levantar a arma e apontar para os jornalistas. Outro enfia a mão na câmera de
um fotógrafo, impedindo o seu trabalho. Vou narrando o que vejo. A área é
cercada e a multidão, dispersada. Dali, nada se pode ver ou ouvir. A informação
existe, mas já está fora de alcance. Já temos a certeza de uma ação em breve das
autoridades. É o que ocorre. Trezentos soldados dos pelotões de choque da
Brigada Militar, além de agentes de elite da Polícia Civil, põem fim ao motim,
deixando, ao final, três reféns e um preso mortos.
Na frente da penitenciária, a Otília informa a movimentação
de ambulâncias. Arrisco ir até o hospital de São Jerônimo, o mais próximo dali,
logo passando a divisa entre as duas cidades. Chego junto com as ambulâncias.
Numa delas, está o líder dos presos, Zé do Doro. O motim acabou.
Só então me dou conta. Estou imundo, dos pés à cabeça, fruto
do tempo maluco daquele dia, do calor infernal a levantar uma poeira vermelha
de um lado da estrada, e de um pó preto, próprio da região carbonífera, do
outro, chuva torrencial a transformar tudo em barro. E há ainda as manchas
enormes de graxa do tal barco do início da manhã.
Horas depois, estamos a Otília e eu de volta à rádio. Somos
quase uma atração, provavelmente os dois repórteres mais imundos a entrarem na
redação da emissora, onde se comemora uma das grandes coberturas da história da
Gaúcha e do rádio do Rio Grande do Sul. Após nos cumprimentar, o gerente
Claiton Selistre, com um riso sacana, volta-se para o coordenador de
Jornalismo, Cláudio Moretto, e determina:
– Moretto, arruma um motorista para levar estes dois
“porquinhos” em casa...
Muito bom. Saudade daqueles tempos de convivência com Ferrareto outros fantásticos colegas da Rádio Gaúcha. Abrs
ResponderExcluirE nós de ouvido no radio movido a pilhas, mas pela narrativa dava para imaginar o cenário!
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