Marçal: esquerda engajada e rádio povão
2005
Luiz Artur Ferraretto
João Batista Marçal (anos 1970)
Fonte: Acervo particular de João Batista Marçal.
Na madrugada da Grande Porto Alegre, no final dos anos 1970,
apresentando o Itaí, a Dona da Noite,
João Batista Marçal declama o que denomina de “poesia rebelde” e toca músicas
do chamado canto popular latino-americano. Aproveita, assim, o horário, da
meia-noite às 5h, em que julga diminuída a atenção das autoridades policiais do
regime militar, reforçando um discurso voltado às classes pobres e contrário ao
governo. Do poema gauchesco Martín Fierro,
do argentino José Hernández, incorpora a denúncia do conflito entre a
simplicidade do trabalhador do campo e o mundo urbano carregado de injustiças.
Da canção A Desalambrar, do uruguaio
Daniel Viglietti, devidamente explicada ao ouvinte, faz um hino em defesa da
reforma agrária, afirmando junto com os agricultores sem-terra:
– Yo pregunto a los
presentes si no se han puesto a pensar que esta tierra es de nosotros y no del
que tenga más.
Dos versos de España en
el Corazón, do chileno Pablo Neruda, enfatiza “por las calles la sangre de los niños”, descrevendo uma cidade
acossada e transformando a Guerra Civil Espanhola, do general Francisco Franco,
no golpe de 1964, dos generais Castello Branco, Costa e Silva, Médici, Geisel,
Figueiredo... Quando o aparato repressivo se dá conta do que ocorre, a Itaí, na
época com os estúdios funcionando junto aos transmissores na cidade de Guaíba,
ao lado da capital gaúcha, amanhece cercada por um pelotão do Exército.
Não vai ser a primeira nem a última vez em que vai ser caçada
a palavra a Marçal, “índio de Quaraí, na fronteira com o Uruguai”, na sua
própria definição, cheio dos “tchês” e “bahs” do linguajar gaudério. Na Rádio
Metrópole, em Canoas, também do ladinho de Porto Alegre, apresentando o Jornal de Integração Comunitária, numa
situação semelhante, vê pela janela do estúdio a chegada da Polícia Federal.
Voltando ao microfone, descreve a situação:
–
Olha, daqui eu tô vendo os camburões da Polícia Federal. A Polícia Federal tá
chegando aqui na rádio. Tão entrando aqui na rádio. Isso aí vai dá bode.
Atenção, pessoal! Olha aí... Não tenham dúvida, eu tô sendo preso. É isso aí.
Eu tô sendo preso e peço aos meus companheiros de Porto Alegre que não me
abandonem nesta hora. Atenção, ouvintes! Eu tô entrando em cana. Olha, daqui eu
tô vendo os camburões da Polícia Federal. Atenção, Porto Alegre! Atenção, meu
sindicato!
O apelo dá resultados e, quando Marçal desce do camburão em
frente ao prédio da Polícia Federal, na avenida Paraná, Zona Norte da capital,
representantes do Sindicato dos Jornalistas, do Sindicato dos Radialistas e da
Associação Rio-grandense de Imprensa, além de políticos do MDB, já lhe dão
respaldo, garantido que seja liberado logo em seguida. Motivando a ação
repressora, o comunicador é, então, uma voz destoante na ordem unida imposta
pelos militares aos meios de comunicação. Em meio às proibições de passeatas
estudantis e sindicais durante a ditadura, o jornalista relaciona este tipo de
limitação imposta pelo governo a uma série de fatos do noticiário da época.
Alude, assim, a manifestações contra a legislação permitindo o divórcio e à
cassação, por aqueles dias, do deputado federal do MDB mineiro, Marcos Tito,
que, sem citar a fonte, reproduzira na tribuna da Câmara Federal um discurso do
líder comunista Luiz Carlos Prestes:
– O Serviço de Meteorologia informa que a temperatura está
altíssima em Brasília... [gargalhada]
Outra coisa, vocês viram as passeatas dos padres contra o divórcio? Ah, quer
dizer que padre pode e estudante não pode? Não estou comentando – notem –,
estou só registrando [mais risadas].
Mas o pior foi a foto do Correio do Povo
com aquelas velhinhas, que eram uma ruga só, levantando bandeirinhas contra o
divórcio. Barbaridade! Também, velhas daquele jeito, com o pé na cova, só
poderiam ser contra o divórcio mesmo. Vocês me racham a cara de vergonha!
Contratado para o horário das 6h ao meio-dia pela Rádio
Capital, então recém instalada em Porto Alegre, não chega a ficar 30 minutos no
ar. Inicia conversando com os ouvintes, toca algumas músicas, folheia os
jornais e lê o horóscopo. O arcebispo de Olinda e Recife, dom Hélder Câmara, é,
então, conforme os comunicados do Departamento de Censura Federal, um nome
proibido no rádio. Controlando-se, não
faz comentários sobre nada, mas lê uma pequena nota publicada nos jornais sobre
uma conferência de dom Hélder em Estocolmo para 20 mil pessoas. Está no ar há
exatos 18 minutos. A porta do estúdio se abre e entra esbaforido o diretor:
– O
senhor pode sair! Está despedido!
Já
na rua pergunta ao sujeito a razão de estar sendo mandado embora.
– É
ordem do III Exército e do Dentel. Ou o senhor vai ou eles vêm aqui e fecham a
rádio.
Sob a mira constante da repressão estatal durante a ditadura
militar, Marçal acumula 27 processos, com quatro enquadramentos na Lei de
Segurança Nacional. No rádio popular, onde comumente impera um discurso
alienado e alienante, o radialista faz do microfone uma arma:
– O jornalista brasileiro está muito perto da elite e muito
longe do povo. Então, aqui no meu cantinho de província, eu rompi com isto. Eu
estou muito longe da elite e muito perto do meu povo. Isto me faz feliz. Disto,
eu me orgulho, o carinho do homem simples da rua, da mulher da rua, dum mendigo,
dum vendedor ambulante, duma prostituta, duma nega velha, dum louquinho...
Chegam e me abraçam como se eu fosse um deles. Eu sou um deles na rua. Isso me
encanta, porque eu fiz da minha profissão, seguramente, além de uma arma de
combate, uma forma de dizer: “Tchê, nós somos iguais”.
De um segmento ao qual se atribuem, nos bancos
universitários, tantas críticas como o rádio popular, João Batista Marçal deu,
assim, lições de jornalismo enfrentando a censura e a repressão.
Marçal – Polícia, povão...
e revolução (2005)
Reportagem: Marcus Reis e Giliane Greff.
Imagens e edição: Daniel Fernandes.
Realização: Centro de Produção Audiovisual da
Universidade Luterana do Brasil.
Fonte: Acervo particular.
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