As várias
caras de Júlio Fürst
2005
Luiz Artur Ferraretto
Noite de 13 de agosto de 1975, há três décadas, na avenida
Benjamin Constant, para os lados do bairro Floresta, em Porto Alegre. Falta
pouco para o show começar e as dependências do Cine-teatro Presidente estão
lotadas. Não resta sequer um dos 1.150 lugares na plateia e o público ocupa,
inclusive, os corredores entre os blocos de cadeiras. Quem vai se apresentar
não é nenhuma estrela da música brasileira ou internacional, até porque nestes
tempos a capital gaúcha está completamente fora do circuito de atrações pop da
indústria fonográfica. São cantores e grupos locais que atraem a atenção de
centenas de jovens para o primeiro Vivendo a Vida de Lee. A repercussão
surpreende até mesmo o patrocinador do evento, a indústria gaúcha A. J. Renner & Cia., fabricante no
Brasil dos produtos da estadunidense H. D. Lee Company.
Convite para o Concerto n. 1 – Vivendo a Vida de Lee (1975)
Fonte: Acervo particular de Julio Fürst.
Desde
1º de abril, a Rádio Continental mantém um programa, de segunda a sexta-feira,
das 23h à meia-noite, para valorizar a marca. Já na abertura, o estúdio
transforma-se em uma espécie de saloon
hertziano. Ao ritmo marcante de um banjo do jingle Living the Live of Lee, efeitos sonoros do tropel de cavalos e
tiros de Colt 45 indicam a chegada de
um tresloucado cowboy de boca-torta
direto das pradarias do Kansas, terra da Lee. Quem anuncia, com a voz pausada a
destacar o nome do disc-jóquei, é o locutor Marcus Aurélio Wesendonk:
– Com vocês, o enviado da H. D. Lee Company, Misteeerrr Lee.
– Yahoo! Yahoo! Olereiii, olereiiiiiii! Respire fundo, xará! O cowboy da Lee chegou... cheio de som e comunicação nos cartuchos. Lee, a marca registrada na totalmente transistorizada! Mister Lee, o disc-jóquei batizado pela H. D. Lee Company, trazendo um mundo novo, todo azul para você!
– Yahoo! Yahoo! Olereiii, olereiiiiiii! Respire fundo, xará! O cowboy da Lee chegou... cheio de som e comunicação nos cartuchos. Lee, a marca registrada na totalmente transistorizada! Mister Lee, o disc-jóquei batizado pela H. D. Lee Company, trazendo um mundo novo, todo azul para você!
Abertura do programa Mister
Lee in Concert (anos 1970)
Material de divulgação preparado pela MPM Propaganda.
Fonte: Acervo particular de Marcus Vinícius Wesendonk.
É a segunda encarnação radiofônica do disc-jóquei Júlio
Fürst, que, antes, na Pampa e também na própria Continental, vivia o negão
Julius Brown, improvável cruza dele mesmo – descendente de alemães – com o
astro da soul music James Brown. Com a voz forçando rouquidão
em uma fala cheia de expressões em um inglês de correta pronúncia e até um
francês “meio de gozação”, mas sempre com um forte sotaque a imitar moradores
de guetos negros dos Estados Unidos, está no ar Julius Brown, primeiro, com o Som Power, programa que se transforma no
Supersoul, quando o comunicador
transfere-se, no ano seguinte, para a 1.120. Uma vinheta anuncia, então, o
único espaço dedicado à black music
no rádio de Porto Alegre:
– [cantada em ritmo de soul music] Olha, que já são dez da noite./ Julius Brown vai
começar./ O som é uma viagem,/ pra toda a magrinhagem./ Mister Julius Brown
está no ar!
Após
a última frase cantada, entra o disc-jóquei em cima, sem dar espaço, falando
rápido, marcando alguns erres, salientando sílabas tônicas e incursionando por
estrangeirismos de um e de outro lado do oceano Atlântico:
–
Pela superquente Con-TI-nental, comunicação tropical, Julius Brown e as
magníficas do soul of America. Nos
transistorizados da superquente com Superrrrrsoul in the night, mou’sier Anele e Augusto Almeida.
Supervisão técnica: Berrrtoldo Lauer Filho. Real
good people é o primeiro embalo de Julius Brown com as magníficas do soul of America, the FAN-tastic, great, –Wow! – Gloria Gaynor...
Abertura do programa Supersoul
(anos 1970)
Fonte: Acervo particular de Francisco Anele Filho.
Sempre
neste estilo e explorando a imaginação do ouvinte, a força do personagem cresce
tanto que, em agosto de 1974, Julius Brown protagoniza a primeira festa de black music do Rio Grande do Sul na
Sociedade Beneficente Floresta Aurora, associação tradicional da comunidade
negra de Porto Alegre. A promoção quebra preconceitos em um estado de racismo
latente e, por vezes, explícito, chegando a chamar a atenção, inclusive, da imprensa
jovem do centro do país, recebendo cobertura da revista Geração Pop.
Ao centro, Julio Fürst encarna o expert em black music
Julius Brown.
Fonte: Acervo particular de Julio Fürst.
Mas voltemos ao Mister Lee. A transformação em
garoto-propaganda gera, no entanto, um efeito ainda mais imprevisto. Quando o
programa Mister Lee in Concert
estreia, a ideia é marcar, com muita country
music, a autenticidade das roupas produzidas no Rio Grande do Sul em meio à
avalanche de produtos falsificados.
Convidado para integrar o júri do IV Musipuc – Festival
Universitário de Música Popular Brasileira, promovido pelo Centro Acadêmico São
Tomás de Aquino da PUCRS, Julio Fürst entra em contato com cantores,
compositores e grupos como Fernando Ribeiro e Arnaldo Sisson, Gilberto Travi e
Cálculo IV, Status 4, Inconsciente Coletivo... Na época, a Continental já roda
a música Vento Negro, dos Almôndegas, gravada em fita rolo no estúdio auxiliar
da emissora e lançada no programa Opinião
Jovem, apresentado das 7 às 7h57, pelos professores do curso pré-vestibular
IPV Clóvis Duarte e José Fogaça, este último também autor da canção. Fürst
convence o patrocinador a permitir a abertura de uma janela dentro do Mister Lee in Concert para os vencedores
do Musipuc. As gravações realizadas na própria rádio passam, em seguida, a
pedido dos ouvintes, a ser executadas também em outros horários. É a
repercussão destes registros quase artesanais que garante a realização do
Concerto n. 1 – Vivendo a Vida de Lee. Até 1978, quando é suspenso o
patrocínio, diversos shows acontecem, na capital e no interior, chegando mesmo
a ultrapassar as fronteiras do estado.
Ainda em 1975, incluindo músicos paranaenses, o Mister Lee in Concert começa a ser
transmitido pela Rádio Iguaçu, de Curitiba, com Julio Fürst gravando, na
capital gaúcha, abertura, anúncio e desanúncio das canções e encerramento. O
comunicador organiza, então, um grande espetáculo no Ginásio Palácio de
Cristal, do Círculo Militar do Paraná, onde 6.500 pessoas assistem o que é
chamado pela imprensa de Novo Movimento Musical do Sul. De Porto Alegre, viajam
73 músicos em três ônibus fretados por Fürst, já convertido em empresário de
alguns destes artistas. Na época, o grupo Almôndegas já havia lançado dois
discos, colocando Canção da Meia-noite,
de Zé Flávio, na trilha sonora da novela Saramandaia,
da Rede Globo. O mesmo ocorre com Hermes Aquino, que aparece com Nuvem Passageira, de sua autoria, em O
Casarão , outro sucesso da teledramaturgia brasileira.
Zé Flávio e Mantra cantam Canção
da Meia-noite no Vivendo a Vida de Lee (segunda
metade dos anos 1970)
Fonte: Não identificada.
Hermes Aquino canta Nuvem
Passageira (segunda metade dos anos 1970)
Fonte: HAESER, Lucio. Continental
– A rádio rebelde de Roberto Marinho. Florianópolis: Insular, 2007. CD.
Importantes não só por projetarem artistas de sucesso
nacional como Almôndegas ou Hermes Aquino, o Mister Lee in Concert e o Vivendo a Vida de Lee chamam a atenção,
também, pela abrangência. Já sem os trejeitos de cowboy e transformado, portanto, no mais importante divulgador da
música urbana da Região Sul, Fürst abre espaço, assim, para uma variedade de
ritmos: folk (Halai Halai, Inconsciente Coletivo...), MPB gaúcha (Fernando
Ribeiro, Status 4...), rock gaudério (Bizarro, Bobo da Corte, Mantra...) e rock
pesado (Palpos de Aranha), além de outros sons, de difícil enquadramento, como
Nelson Coelho de Castro, transitando pelo samba e pela MPB, ou o Utopia, de
Bebeto Alves, com seu instrumental de violinos e violas.
Em 1978, com o fim do contrato publicitário, o Mister Lee in Concert sai do ar e
ocorrem os últimos shows do Vivendo
a Vida de Lee. Aqueles três anos com dezenas de programas de rádio e
apresentações ficam, mesmo assim, como um importante momento de redefinição da
música urbana do Rio Grande do Sul.
Fantástico registro desta bela história de Julio Furst. Obrigado professor Luiz Artur. Forte abraço
ResponderExcluirObrigado pela mensagem, Pitta. Grande abraço.
ExcluirPuxa, que legar ler isso. Embora resida em Pelotas, vivi nessa época em Porto Alegre e lembro de tudo o que se disse acima.Época inesquecível!
ResponderExcluirParabéns pelo registro.
Fernando Soares
Obrigado.
ExcluirExcelente matéria, bons tempos que presenciei.
ResponderExcluirLendo este texto magnífico, impossível não sentir uma saudade nostálgica. Além de Júlio, tivemos outros grandes comunicadores do rádio porto alegrense. Lembro também, com saudade, do período inicial de nossas rádios FM lá nos meados da década de 80.
ResponderExcluirBah,voltei no tempo,agora,lembrando do Programa na Currrrrrva do radio 1981 na Atlantida Fm em Santa Maria
ResponderExcluirEu era guria, pré adolescente e não podia ir aos shows,mas ouvia o programa todas as noites. Conheci assim todos os artistas e bandas citados no texto. Eu vibrava e viajava com o Mr.Lee,com quem também conheci o rock americano e inglês. Virei cantora, radialista e tradutora intérprete de inglês porque tive essa maravilhosa escola.Em 2000/2001 trabalhei na Rádio Kiss(SP), onde produzia e apresentava o "Made in Brazil, a história do rock brasileiro". Através do Anele, que me passou o material em MD, passei a rodar nossa MPG lá em Sampa. Estou gravando meu primeiro "disco", q sai em breve.Valeu,Mr.Lee. HelenaT.
ResponderExcluirQue honra ler essa matéria! Parabéns Prof.Luis Ferraretto! Grde Abraço. Julio Fürst
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