Rede da Legalidade: do porão do Palácio Piratini para o
Brasil
2006
Luiz Artur Ferraretto
Capa da Revista do Globo,
a edição dos “12 dias que abalaram o país” (setembro
de 1961)
Fonte: Revista do Globo,
Porto Alegre, ano 33, n. 803, 16-29 set. 1961. Capa.
– Peço a vossa atenção para a comunicação que vou fazer.
Muita atenção. Atenção, povo de Porto Alegre! Atenção, Rio Grande do Sul!
Atenção, Brasil! Atenção, meus patrícios, democratas e independentes, atenção
para minhas palavras.
Por volta das 11h, do dia 28 de agosto de 1961, é um Leonel
de Moura Brizola jovem, na força dos seus 39 anos e, há pouco menos de três,
eleito governador do Rio Grande do Sul, que se dirige à população no
improvisado estúdio de rádio nos porões do Palácio Piratini. Nestas quase duas
semanas – “os 12 dias que abalaram o país”, como vai definir, logo depois, a Revista do Globo, tradicional publicação
gaúcha, em sua reportagem de capa –, o governador torna-se figura constante ao
microfone da Rede ou Cadeia Nacional da Legalidade, circulando por ali – uma
imagem quase quixotesca, com uma metralhadora INA a tiracolo e um exemplar da
Constituição Federal na mão –, em meio a dezenas de jornalistas e técnicos
voluntários.
Está começando “o último levante gaúcho”, como o historiador
Joaquim Felizardo chama o movimento em defesa da posse do vice-presidente da
República, João Belchior Marques Goulart, o Jango, após a renúncia de Jânio
Quadros. Em contraste com outras mobilizações anteriores, nesta, o rádio
constitui-se na arma principal.
A crise daquele fim de agosto e início de setembro, primeiro
embate do processo que leva a direita ao poder três anos depois, começa na
sexta-feira, 25 de agosto. Para o sábado, previa-se a chegada do presidente da
República em uma visita oficial de cinco dias ao estado. Menos de um ano antes,
Jânio da Silva Quadros, de meteórica carreira política e não atrelado às
máquinas partidárias tradicionais, tinha sido eleito por uma coligação em que
despontava uma relutante União Democrática Nacional. Como a legislação permite,
presidente e vice são escolhidos em separado. Apoiando Jânio, a UDN tem como
candidato a vice Milton Campos, e o Partido Democrata Cristão lança Fernando
Ferrari. Ambos, no entanto, são derrotados por João Goulart, do PTB, herdeiro
político de Getúlio Vargas e com bom trânsito à esquerda. Naquela sexta-feira
algo chuvosa, a renúncia do presidente surpreende a todos. Depois de se
assegurar de que não há um golpe em andamento, Brizola decide garantir a posse
de Jango, naquele momento em visita oficial à República Popular da China, do
líder comunista Mao Tse-Tung.
No Rio de Janeiro, o governador da Guanabara, Carlos Lacerda,
de fortes tendências golpistas, dá apoio aos militares contrários a João
Goulart. Em Brasília, o ministro da Guerra, Odílio Denys, anuncia que, ao pisar
em solo brasileiro, o vice-presidente será preso. Dias depois, o general vai
dizer que o Brasil encontra-se em uma encruzilhada entre a democracia e o
comunismo. Candidato derrotado e indicado pelo Partido Social Democrático para
encabeçar a chapa que tivera Jango como vice pelo PTB, o marechal Henrique
Batista Duffles Teixeira Lott lança um manifesto endereçado aos seus “camaradas
das Forças Armadas”, defendendo a constitucionalidade. No início da manhã de
domingo, o militar legalista é preso. A censura também começa a se fazer presente
nas redações da antiga capital federal.
Ainda no sábado, Hamilton Chaves, do Gabinete de Imprensa do
Palácio Piratini, distribui, aos veículos de Porto Alegre, o manifesto do
marechal Lott, acrescido de uma nota do governador Leonel Brizola. As rádios
Gaúcha e Farroupilha já haviam suspendido sua programação normal e transmitiam
dos centros do poder político na capital.
Por volta das três horas da madrugada de domingo, Brizola dá
uma entrevista coletiva, garantindo que vai resistir à tentativa de golpe.
Falando ao microfone das rádios Difusora, Farroupilha e Gaúcha, o governador
começa a atrair milhares de pessoas para o Palácio Piratini e para a Praça da
Matriz, em frente à sede do Executivo do Rio Grande do Sul. Está começando a se
constituir o que ele chamará, em vários discursos, de a Cidadela da Legalidade.
Naquela madrugada ainda, por ordem do ministro da Guerra, são retirados os
cristais dos transmissores das rádios Farroupilha e Gaúcha, tentando repetir em
Porto Alegre o que já ocorria em outras capitais controladas pelos golpistas.
O diretor da Gaúcha, Maurício Sirotsky Sobrinho, propõe que a
emissora seja requisitada pela Assembleia Legislativa, o que chega a ocorrer,
com alguns efeitos práticos. A rádio, no entanto, vai acabar se integrando à Rede
da Legalidade. Também a Farroupilha tenta articular o seu retorno ao ar. Na
manhã de domingo, dia 27, das grandes emissoras de Porto Alegre, apenas a
Guaíba, ligada aos jornais Correio do
Povo e Folha da Tarde, permanece
transmitindo. Com certa simpatia pelo Partido Libertador e pela causa dos
grandes produtores rurais – integrando, portanto, o que, na época, se chamava
de as classes conservadoras –, o empresário Breno Caldas, proprietário da
Guaíba, mantém uma atitude discreta desde os primeiros momentos da crise. Não é
simpático nem à figura nem às ideias do governador. Por sua vez, Brizola
sente-se acuado e, mesmo alertado pelo seu secretário do Interior e Justiça,
João Caruso, de que apenas o governo federal tem poder para requisitar uma
emissora de rádio, decide colocar a Guaíba a serviço da segurança pública. Em
uma ligação telefônica para a casa do proprietário da emissora e da Companhia
Jornalística Caldas Júnior, comunica categórico:
– Doutor Breno, eu quero avisá-lo que eu resolvi encampar a
Rádio Guaíba. Já ocupei os transmissores lá na ilha [da Pintada, onde estão até hoje os transmissores da rádio] e vou
ocupar agora aqui no centro, e quero lhe dar conhecimento disso.
É um Breno Caldas irritado que responde ao governador do
estado:
– Isso aqui é uma concessão federal e é uma propriedade
privada. O senhor está invadindo uma propriedade privada e, ao mesmo tempo,
esbulhando um direito de exploração de uma concessão regularmente concedida.
Depois de muita discussão e tendo que aceitar o ato do
governo, o empresário pede uma garantia por escrito:
– Então o senhor faz o seguinte, me manda uma carta ou um
ofício... um documento oficial... o senhor assuma toda a responsabilidade desse
gesto. Assim, da minha parte não haverá problema, eu não posso fazer nada, só
posso me conformar com o fato consumado, mas, ao menos, quero me resguardar.
No final da manhã daquele domingo, dia 27, da janela junto ao
estúdio da Rádio Guaíba, o diretor comercial da emissora, Flávio Alcaraz Gomes,
vê duas kombis da Guarda Civil estacionarem bruscamente. Delas, sai uma dezena
de cardeais, como o povo apelidou os homens do choque em seus uniformes de cor
cáqui e seus quepes vermelhos. Quem traz a intimação é o secretário estadual da
Fazenda, Gabriel Obino, escolhido por Brizola devido às suas boas relações com
a família de Breno Caldas. Consultado via telefone por Gomes, o empresário
recomenda:
– Podes entregar a rádio, desde que ela seja operada de
outro lugar.
Trabalhista convicto, o responsável técnico pela Rádio Guaíba,
engenheiro Homero Carlos Simon, aproveita, então, uma linha telefônica
instalada para fornecer o áudio da visita de Jânio às emissoras de rádio. Deste
modo, faz uma conexão – improvisada, mas eficiente – entre os transmissores na
Ilha da Pintada e uma pequena sala no porão do Palácio Piratini, onde as
paredes haviam sido cobertas, tempos antes, com forração acústica, preparando
um futuro estúdio para os pronunciamentos semanais de Brizola na Farroupilha.
Agora, com um microfone e um toca-discos colocados às pressas, começa a se
estruturar, nestas instalações precárias, a Rádio da Legalidade, base de uma
rede que irá mobilizar milhares de pessoas e garantir a posse constitucional de
Jango.
Primeiro discurso de Leonel Brizola ao microfone da Rede da
Legalidade (28 de agosto de 1961)
Fonte: Acervo particular de Flávio Alcaraz Gomes.
Trecho do Musical Legalidade (4 de setembro de 2011)
Espetáculo produzido pelo governo e pela Assembleia
Legislativa do Rio Grande do Sul e encenado em frente ao Palácio Piratini, o
palco dos fatos 50 anos antes. Na sequência do primeiro discurso de Leonel
Brizola ao microfone da Rede da Legalidade, o ator Evandro Soldatelli aparece
rodeado por profissionais de rádio e de imprensa que assistiram à transmissão
original.
Narração: Ida Celina e Luiz Paulo Vasconcelos.
Direção geral: Carla Joner.
Direção artística: Luciano Alabarse.
Direção musical: Hique Gomez.
Roteiro: Rafael Guimaraens.
Produção executiva: Claudia D’Mutti
Fonte: TVCOM/ TVE. Musical Legalidade. Porto Alegre, 4 set. 2011. Programa de televisão.
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