A organização institucional do rádio gaúcho
2014
Luiz Artur Ferraretto

É em meio aos antagonismos de classe, opondo patrões e empregados, que o rádio do Rio Grande do Sul institucionaliza-se em paralelo à efervescência política reinante no país durante o governo de João Goulart. Antes de Jango chegar ao poder, dois fatos vão criar as condições necessárias para o surgimento de entidades que, em seu conjunto, mesmo defendendo interesses opostos, levam a radiodifusão sonora a ser tratada como um setor produtivo, mais ou menos coeso, dentro da sociedade brasileira. Em 24 de junho de 1961, o Decreto n. 50.840, assinado pelo presidente Jânio Quadros, reduz de 15 para três anos o período para renovação de concessão, causando protestos por parte do empresariado, mas, como, logo, sobrevém a renúncia, a medida na prática nem chega a vigorar. Dois meses depois, o movimento da Legalidade demonstra o poder de mobilização dos radialistas, estando, na opinião de Lauro Hagemann, na origem da estruturação do sindicato da categoria no estado. No plano mais amplo, opõem-se duas correntes: uma, a do grande capital, defendendo a internacionalização, e a outra, dos trabalhadores associada às forças reunidas em torno do presidente João Goulart, com uma perspectiva mais nacionalista e independente.

No primeiro semestre de 1962, em termos nacionais, surgem articulações que vão levar à criação do Comando Geral dos Trabalhadores durante o IV Congresso Sindical Nacional, de 17 a 19 de agosto, em São Paulo. No CGT, há, então, forte presença de elementos ligados ao Partido Trabalhista Brasileiro, o mesmo do presidente, e ao Partido Comunista Brasileiro, na ilegalidade desde maio de 1947. Em paralelo, no Rio Grande do Sul, os radialistas lutam pela criação de uma entidade sindical que os represente. Pelo lado empresarial, em resposta às tendências estatizantes do governo Goulart e à própria mobilização dos trabalhadores, surgem também associações classistas, comungando dos mesmos interesses de fóruns como o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad) e o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipês).

Deste modo, a partir de uma associação desativada, mas registrada na Delegacia Regional do Trabalho, os radialistas gaúchos começam a se organizar em prol da criação de um sindicato para a categoria. Com a carta sindical concedida em 14 de julho de 1962, é realizada uma assembleia nos primeiros dias de agosto, reunindo 300 trabalhadores no salão nobre do Instituto de Assistência dos Industriários (IAPI). Votam uma pauta de reivindicações e definem a primeira diretoria do Sindicato dos Trabalhadores em Empresas de Radiodifusão e Televisão do Rio Grande do Sul, tendo Lauro Hagemann como presidente desta nova entidade representativa.

Assembleia de dissídio dos radialistas (5 de agosto de 1962)
Da esquerda para a direita, Fábio Silveira, Victor Nuñez (assessor jurídico do sindicato), Lauro Hagemann, Graça Guimarães, Adroaldo Guerra, Raul Ulguin (ativista sindical) e Ivan Castro.
Fonte: Acervo particular de Lauro Hagemann.

Há, no entanto, um problema para o encaminhamento das negociações com a classe patronal, ainda não organizada em uma entidade representativa. Embora o dissídio seja unificado, as tratativas seguem sendo realizadas emissora a emissora. Algumas, no entanto, cedem, concordando com as reivindicações dos trabalhadores. Pretendendo forçar o fechamento de um acordo, a categoria declara-se em iminência de greve, mas os Diários e Emissoras Associados e a Rádio Princesa não aceitam a proposta. Como consequência, em 21 de setembro, Dia do Radialista, nova assembleia deflagra a paralisação nas duas empresas. Piquetes são montados na Galeria do Rosário, onde estão os estúdios das rádios Princesa, no 21° andar, e, por coincidência, os da Farroupilha, no 22°. O governador interino, Ajadil de Lemos, então secretário estadual do Interior e Justiça, dá garantias a Lauro Hagemann de que não vai haver repressão policial ao movimento. A greve, no entanto, não ocorre sem uma dose de violência. Com certa conivência das autoridades estaduais ligadas ao PTB, os radialistas chegam a cortar a energia elétrica dos transmissores da Princesa, mas o foco principal da mobilização incide mesmo sobre os Associados, onde as condições de trabalho já vinham se deteriorando há bastante tempo. No Morro Santa Teresa, um poste de energia elétrica chegou a ser atravessado em frente à entrada da TV Piratini. Depois de 15 horas de greve, as reivindicações são atendidas pela classe patronal. Para se ter uma ideia, escudadas nesta paralisação, as lideranças dos trabalhadores obtêm, nas tratativas do dissídio do ano seguinte, um reajuste de 100%.

Já o empresariado mobiliza-se em torno da aprovação do Código Brasileiro de Telecomunicações. Recuperando o espírito dos decretos n. 29.783, de julho de 1951, de Getúlio Vargas, e n. 50.840, assinado dez anos depois por Jânio Quadros, ambos reduzindo o período de validade das concessões, o presidente João Goulart veta 52 pontos da Lei n. 4.117, aprovada em 27 de agosto de 1962, instituindo o código. Assim, pretendendo aumentar o controle do Estado sobre a radiodifusão comercial, Jango rejeita, por exemplo, o parágrafo 3° do artigo 33, que estabelece a concessão por 10 anos para estações de rádio e por 15 para as de TV. O prazo de funcionamento das emissoras, portanto, ficaria a critério do Poder Executivo. O veto ao artigo 54, por sua vez, atinge garantias à livre expressão de críticas e de conceitos desfavoráveis aos atos de qualquer um dos poderes da Nação.

A partir daí, os proprietários de empresas do setor articulam-se para manter o que consideram conquistas. Nos dias anteriores à análise dos vetos presidenciais, em novembro de 1962, os empresários realizam uma ação lobista junto aos parlamentares, organizada pelo diretor geral dos Diários e Emissoras Associados, João de Medeiros Calmon. No domingo, dia 25, começam a chegar à capital federal os representantes das emissoras de todo o país. Do Rio Grande do Sul, viajam, entre outros, Antônio Abelin, da Rádio Imembuí, de Santa Maria; Flávio Alcaraz Gomes, da Rádio Guaíba; Frederico Arnaldo Ballvé, da Rádio e TV Gaúcha; Nelson Dimas de Oliveira e Franklin Peres, dos Associados; e Victor Hugo Ferlauto, das Emissoras Reunidas. Nas noites de 26 e 27 de novembro, apesar da posição contrária da bancada do PTB, os vetos vão sendo derrubados um a um.
Fundação da Abert (27 de novembro de 1962)
Da esquerda para a direita, Flávio Alcaraz Gomes (Rádio Guaíba), João Calmon (Diários e Emissoras Associados), Victor Hugo Ferlauto (Emissoras Reunidas) e outros dirigentes de rádio e televisão.
Fonte: GOMES, Flávio Alcaraz. Diário de um Repórter. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1995. p. 116.

Coincidindo com o último dia da votação, representantes de 172 estações – entre as quais as de maior potência na época e a totalidade das de TV – fundam, no Hotel Nacional, a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão. Pouco mais de duas semanas depois da criação da Abert, a exemplo do que acontecera em Brasília, os dirigentes de estações do Rio Grande do Sul organizam uma entidade representativa de âmbito estadual, a Associação Gaúcha de Emissoras de Rádio e Televisão (Agert). Da reunião inicial, no dia 13 de dezembro, realizada na sede da Associação Rio-grandense de Imprensa, participam 62 lideranças empresariais, que escolhem a primeira diretoria da entidade, tendo como presidente Nelson Dimas de Oliveira, dos Diários e Emissoras Associados.

Um ano depois, em resposta à nova mobilização dos trabalhadores do setor, surge o Sindicato das Empresas de Rádio e Televisão no Rio Grande do Sul, tendo como primeiro presidente Franklin Peres, dos Diários e Emissoras Associados. No âmbito da consciência e das identidades de classe, completa-se, deste modo, o delineamento institucional básico, no território do estado, da indústria de radiodifusão sonora contemporânea. Vão auxiliar na maior definição deste processo a instalação, em 1963, de um escritório regional do Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística e o crescimento do mercado publicitário gaúcho ao longo das décadas de 1960 e 1970.

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