O impacto do suicídio de Getúlio Vargas no rádio do Rio
Grande do Sul
2013
Luiz Artur Ferraretto
Incêndio do prédio da Rádio Farroupilha (24 de agosto de
1954)
Fonte: Manchete, Rio
de Janeiro, ano 3, n. 124, p. 10, 4 set. 1954.
Durante muitos anos, o então locutor em início de carreira
Enio Rockembach vai lembrar-se daquela cena da manhã do dia 24 de agosto de
1954. Pesados discos de acetato – os bolachões com músicas e programas da Rádio
Farroupilha – sendo jogados do casarão da emissora, nos altos do viaduto Otávio
Rocha, ganhando os ares sobre o cruzamento das avenidas Duque de Caxias e
Borges de Medeiros para despedaçarem a história da principal estação do Rio
Grande do Sul. Como a Farroupilha, que se estima tivesse a maior audiência na
época, concentrou tanta fúria da população após o suicídio do presidente da
República, Getúlio Vargas? Para responder esta pergunta, é preciso compreender
a relação entre política e radiodifusão e, como consequência desta, analisar as
posições manifestadas por alguns profissionais.
De fato, a defesa intransigente do grande capital e da
presença do investimento estrangeiro, além de um feroz anticomunismo, marcam a
trajetória de Assis Chateaubriand, o todo-poderoso proprietário dos Diários e
Emissoras Associados. No plano partidário, opiniões semelhantes são
compartilhadas, na época, pela União Democrática Nacional (UDN), pelo Partido
Libertador (PL) e mesmo por setores do Partido Social Democrático (PSD), uma
das bases de sustentação do governo federal. A política de Vargas, em sentido
contrário, trilha o caminho do nacionalismo e do estatismo, com o apoio, em
especial, do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB).
Ex-advogado de grandes grupos estrangeiros como a Brazilian
Traction Light and Power Company Limited e a Itabira Iron Ore Company Limited,
Chatô vê no capital externo um incentivo ao desenvolvimento do país, tendo, por
exemplo, realizado campanha, no final dos anos 1920, para que a Ford se
instalasse na Amazônia e explorasse, em larga escala, a borracha produzida a
partir do látex extraído dos seringais. Anticomunista, em 1935 defende em seus
jornais o fechamento da Aliança Nacional Libertadora (ALN), a coalizão que
pretendia lutar contra o fascismo, o imperialismo, o latifúndio e a pobreza.
Sob esta orientação devem ser entendidas várias das posições
difundidas pelos Associados naquele mês de agosto de 1954, no Rio Grande do
Sul. Um ano antes, fora do controle direto da empresa, mas patrocinado pela
Standard Oil Company of Brazil e com notícias da United Press, a edição do Repórter Esso, veiculada pela Rádio
Farroupilha, ignora, por exemplo, o grande debate nacional que levaria à
criação da Petróleo Brasileiro S.A. (Petrobras), em outubro de 1953. Em
paralelo, Chateaubriand, em seus artigos, argumenta, então, que o lema “O
petróleo é nosso” não passa de “um chavão soviético” e as teses nacionalistas
sobre a exploração dos recursos minerais do país são “coisa de comunistas”.
Outras medidas protecionistas do governo contra o capital
estrangeiro, igualmente, motivam críticas da oposição e ganham espaço nos
veículos do Associados. Em janeiro de 1952, Vargas impõe um limite de 10% para
a remessa de lucros das empresas estrangeiras. No ano anterior, com a taxa de
câmbio brasileira supervalorizada, a quantia enviada às matrizes destas
companhias saltara de US$ 83 milhões para US$ 137 milhões. Se estas medidas de
cunho nacionalista irritam o grande capital internacional, o mesmo acontece com
sua contraparte local. O empresariado brasileiro mobiliza-se, por exemplo,
contra o reajuste de 100% no valor do salário mínimo, anunciado pelo presidente
da República em 1° de maio de 1954.
O engajamento de Chateaubriand cresce quando Carlos Lacerda,
proprietário do jornal Tribuna de
Imprensa, do Rio de Janeiro, começa uma verdadeira guerra de denúncias. O
primeiro alvo é o diário Última Hora,
de Samuel Wainer, alinhado com o governo e criado com base em empréstimo junto
ao Banco do Brasil. O proprietário dos Associados abre o microfone e as câmeras
das TVs Tupi, do Rio de Janeiro e de São Paulo, para os cáusticos comentários
do jornalista, que relaciona Wainer a Vargas, denunciando um esquema de
corrupção a partir do Palácio do Catete. Com o atentado da rua Toneleros, em
que o major Rubens Florentino Vaz, um guarda-costas de Lacerda, é morto,
acirra-se a crise que levará ao suicídio do presidente da República.
Sem a veemência de Carlos Lacerda, que beira, por vezes, a
deselegância, e conquistando o respeito, inclusive, de seus adversários, o
advogado e jornalista Manoel Braga Gastal redige diariamente, em Porto Alegre , fortes
críticas ao governo federal, veiculadas no comentário Dois Dedos de Prosa, às 12h45, na Rádio Farroupilha. Admirador do
parlamentarista Raul Pilla, que havia fundado o Partido Libertador, Gastal
exerce, naquele momento, um mandato como vereador pelo PL em Porto Alegre. Lidos
pelo próprio radialista ou por um locutor, os textos seguem à risca a
orientação partidária. Defendem um Estado que, no campo econômico, orientaria,
estimularia e assistiria a produção, interferindo somente quando necessário ao
bem comum e não concorrendo com a iniciativa privada. Nesta linha, o capital
estrangeiro deveria receber o mesmo tratamento legal, fiscal e administrativo
dispensado ao capital nacional.
Neste 24 de agosto de 1954, a indignação dos partidários do
presidente vai crescer porque a Farroupilha, ao contrário de suas concorrentes,
mantém a sua programação normal. Enquanto os getulistas choram o suicídio do
presidente, a emissora dos Associados segue com as músicas e a radionovela da
manhã, interrompidas, vez por outra, por alguma edição noticiosa
extraordinária.
Mesmo assim, aquela madrugada tinha sido de muito trabalho
para Segundo Brasileiro Reis, do Departamento de Notícias da PRH-2. Conforme o jornalista,
por volta das 3h, o diretor-geral dos Diários Associados no Rio Grande do Sul,
Moacir Nobre, entra porta adentro da casa do jornalista, dizendo:
– Vamos colocar a Farroupilha no ar. A coisa está preta no
Rio de Janeiro.
Na sequência, a emissora, que interrompia suas transmissões
à meia-noite, volta ao ar com o próprio Moacir Nobre assumindo o controle das
operações técnicas, enquanto Reis faz a escuta das rádios do Rio de Janeiro.
Com a informação de que Getúlio Vargas vai se licenciar do cargo, os trabalhos
são interrompidos às 5h. Um pouco depois, o telegrafista responsável pela
decodificação do material da United Press para a edição local do Repórter Esso recebe uma mensagem:
– Preveem-se, para o dia de hoje, acontecimentos
extraordinários na capital da República. Alertamos os companheiros para que
fiquem atentos ao que pode acontecer.
O boletim lido por Lauro Hagemann às 8h não traz, no
entanto, informações mais importantes do que as da madrugada. Pouco depois, a
escuta da emissora capta uma edição extraordinária do Esso, da Rádio Nacional, do Rio de Janeiro, com um Heron Domingues
de voz embargada ao microfone:
– E atenção, atenção. Rio, urgente. O presidente Getúlio
Vargas acaba de suicidar-se com um tiro no coração. Junto ao seu corpo foi
encontrado um bilhete: “À sanha dos meus inimigos, deixo o legado da minha
morte”. E atenção que vamos repetir a notícia...
Lauro Hagemann
Entrevista realizada por Luiz Artur Ferraretto em 3 de agosto de 1999.
Como lembraria anos depois o jornalista Flávio Alcaraz
Gomes, na praça da Alfândega e na rua da Praia, pontos tradicionais do centro
de Porto Alegre, as pessoas começam a gritar:
– Mataram o doutor Getúlio. Foram eles! Vamos incendiar o Diário de Notícias e a Rádio
Farroupilha.
Mesmo já tendo dado a notícia, a PRH-2 continua com sua
programação normal, majoritariamente dedicada ao entretenimento. A Gaúcha, por
sua vez, “única emissora que imediatamente guardou luto pela morte de Getúlio
Vargas”, altera sua programação e passa a transmitir música erudita, junto com
a frequente repetição do texto da carta-testamento.
Por volta das 9h, um primeiro grupo de manifestantes tenta
invadir o casarão onde funcionam a Difusora, no segundo andar, e a Farroupilha,
no primeiro, mas é rechaçado. Móveis amontoam-se nas portas de acesso, como
barricadas, a impedir o acesso dos getulistas. Para os lados da rua da Praia,
as sedes dos partidos de oposição já ardem em chamas. Bem em frente
à praça da Alfândega, o fogo consome o prédio do Diário de Notícias.
O elenco de radioteatro está pronto para iniciar a
interpretação de mais um capítulo da novela das 10h, quando a multidão
consegue, em uma segunda arremetida, invadir o prédio nos altos do viaduto
Otávio Rocha. Vão entrando com galões de gasolina, logo utilizada para
incendiar as instalações. Os funcionários conseguem escapar pelos fundos da
velha casa. Um deles sai ferido no incidente, como vai registrar a Revista do Globo:
O radialista Gerson Borges, preso no interior do prédio ardente, fraturou a espinha numa dramática fuga das chamas. Atirou-se do segundo andar.
Também as instalações da Difusora e o auditório da
Farroupilha na rua Siqueira Campos são atingidos pelo vandalismo. Ao final da
tarde, da infraestrutura dos Diários e Emissoras Associados, na capital gaúcha,
sobram apenas os transmissores das duas rádios, localizados a distância considerável
do centro. A Farroupilha fica fora do ar por quase duas semanas. Do seu acervo,
perdem-se para sempre 20 mil discos, gravações inéditas e 30 novelas completas.
Na sequência, as dificuldades econômicas crescem e o pagamento dos salários na
forma de vales intensifica-se até se tornar constante no dia a dia dos
funcionários de Assis Chateaubriand.
Flávio Alcaraz Gomes (2005)
Fonte: FERRARETTO, Luiz Artur. Itinerários de um repórter.
In:
GOMES, Flávio Alcaraz. Eu Vi!. Porto
Alegre. Publicato, 2006. DVD.
Na realidade, o impacto sobre a principal emissora de rádio
do Rio Grande do Sul só não é maior, porque, sem o favorecimento governamental,
começam a minguar as atrações da Gaúcha, que mergulha em dificuldades
financeiras. A Farroupilha, no entanto, sofre sem o amparo do Diário de Notícias, que, no processo,
além de parar de circular durante um período significativo, também perde
credibilidade. Portanto, os dados disponíveis indicam certa retração no mercado
de radiodifusão em Porto
Alegre a partir de agosto de 1954.
Texto sensacional
ResponderExcluirMuito obrigado.
ExcluirAlheio aos problemas políticos enfrentados pela Farroupilha , em virtude de atitudes de seu então controlador , nos idos dos 50s , eu a ouvia lá no meu Sul de Minas ...
ResponderExcluir