A inauguração da Rádio Guaíba
2006
Luiz Artur Ferraretto
Arlindo Pasqualini discursa na inauguração da Rádio Guaíba
(30 de abril de 1957)
Fonte: Correio do Povo,
Porto Alegre, 1º maio 1957. p. 30.
Faltando poucos minutos para o meio-dia, a edição de sábado da
Folha da Tarde, o principal
vespertino do Rio Grande do Sul, acaba de rodar e um grupo de repórteres e
redatores do jornal, junto com alguns colegas do Correio do Povo, comprime-se do outro lado do vidro que separa o
estúdio do operador de áudio. Ouve-se, então, um arranjo especialmente
preparado na Rádio Nacional, do Rio de Janeiro, para o tradicional Boi Barroso, a melodia das trovas
tradicionais do cancioneiro gaudério. Com a voz embargada pela emoção, o
locutor Aden Rossi anuncia, na sequência, impondo silêncio entre os colegas
apinhados no corredor do segundo andar da rua Caldas Júnior, número 219:
– Senhoras e senhores, boa tarde. A partir deste momento,
passa a operar regularmente através das suas emissoras de ondas médias, ZYU-58,
em 720 quilociclos, e em ondas curtas de 25 e 49 metros , 11.785 e 9.865
quilociclos, a Rádio Guaíba, de Porto Alegre, Brasil. A Rádio Guaíba encetará,
a partir deste momento, a sua programação musical de hoje, sábado, 20 de abril
de 1957. Como primeiro número, ouviremos, por Frank Pourcell e sua orquestra, Three Coins in the Fountain...
Three Coins in the Fountain, de Frank Pourcell, com Franck
Pourcell e sua orquestra
Não é ainda a inauguração oficial, como já sabem desde o
início da manhã os leitores do Correio do
Povo:
Acontece que, nos dez dias que distam entre uma data e outra,
a Guaíba não colocará publicidade alguma em seus programas, transmitindo
exclusivamente música para os sintonizadores dos 720 quilociclos. Posteriormente,
seguindo religiosamente a linha que se traçou, jamais a publicidade
ultrapassará de 1/3 do período de transmissões. Assim, valoriza ao máximo as mensagens
comerciais e propicia aos sintonizadores espaços que, realmente, possam ser
ouvidos.
Como registra o mesmo jornal no dia seguinte, aos primeiros
ouvintes da Guaíba já chama a atenção a qualidade do som da nova emissora, cuja
parte técnica está sob a responsabilidade de Homero Carlos Simon, contratado
quatro anos antes. Desde 1953, o engenheiro vinha planejando e orientando a
instalação dos transmissores colocados na ilha da Pintada de forma a aproveitar
a conformação geográfica do local – o espelho d’água formado pelo lago Guaíba –
para melhorar as irradiações. Nacionalista militante, o diretor técnico da
emissora adquire equipamentos e componentes eletrônicos em sua grande maioria
fabricados no Brasil, que são alterados, ajustados e remontados sob a sua
supervisão, obrigando, por vezes, um trabalho redobrado, como ele mesmo
lembraria anos depois:
Foi uma das lutas, das mais ingratas, mas ao final vencedora, de quatro anos seguidos, pelos problemas técnicos que tivemos de enfrentar para a instalação de transmissores e torres.
A entrada no ar da rádio segue um cronograma planejado pelo
diretor da emissora, Arlindo Pasqualini, e aprovado por Breno Caldas, o
proprietário do Correio do Povo e da Folha da Tarde, jornais aos quais,
então, se junta a Guaíba. Assim, às 6h da quinta-feira, 25 de abril, a ZYU-58
começa a transmitir inclusive com a sua síntese noticiosa, o Correspondente Renner, lido, na época,
por Ronald Pinto. A aproximação com os ouvintes vai se dando sem sobressaltos,
de modo que, na semana seguinte, nem a chuva ou o frio daquela terça-feira, dia
30, impediriam que, uma hora e meia antes da inauguração oficial, marcada para
as 20h30, o Theatro São Pedro – palco cuidadosamente escolhido – já estivesse
lotado. Contrastando com a emoção do diretor de broadcasting, Jorge Alberto Mendes Ribeiro, e da locutora Jalma de
Arroxelas, que o apresentam ao público, Arlindo Pasqualini transmite serenidade
ao discursar:
– Senhoras e senhores. A Rádio Guaíba, de Porto Alegre, que
ora se inaugura aqui no Theatro São Pedro, com a presença para nós tão grata e
tão honrosa de todos vós, constitui um empreendimento novo, mas que, embora
novo, nasce sob o signo de uma tradição. É que sua vinculação a dois grandes
jornais, o Correio do Povo e a Folha da Tarde, lhe traça implicitamente
os rumos e a orientação. Tal orientação, como sabeis, é de absoluta
independência, a qual tem para nós seus limites naturais e intransponíveis nos
princípios da moral e nos imperativos do bem comum. Acerca de nossa programação
normal, que deverá ter início amanhã, o que vos posso adiantar, em poucas
palavras, é que ela não terá o luxo das grandes montagens. Mas, mesmo quando
singela, jamais cairá na vulgaridade.
Mendes Ribeiro e Arlindo Pasqualini na inauguração da Rádio
Guaíba (30 de abril de 1957)
Fonte: Acervo particular de Flávio Alcaraz Gomes.
Proferido nas dependências do mais sofisticado teatro da
cidade, o pronunciamento de Pasqualini não poderia mesmo deixar de ser um tanto
solene. Solenidade que ultrapassa os limites do discurso em si e do estudado
uso da segunda pessoa do plural. Mais do que tudo, o Major, apelido do
jornalista desde os tempos da Revolução de 1930, lança as bases de uma
programação sóbria e, por vezes, sisuda, tradicionais marcas do Correio do
Povo¸ conferindo, ainda que por uma relação quase gregária, uma boa dose de
credibilidade ao novo empreendimento de Breno Caldas.
A escolha do Theatro São Pedro como palco do programa desta
noite de gala obedece, portanto, a uma lógica. Sugerida pelo radialista e
publicitário Ruy Figueira e acatada pelo diretor comercial Flávio Alcaraz
Gomes, a ideia é utilizar a casa de espetáculos da elite porto-alegrense para
indicar que uma emissora diferente está surgindo. Armindo Antônio Ranzolin,
assistente da direção de 1976
a 1984, dá uma boa definição desta nova forma de fazer
rádio, conhecida, no mercado do Rio Grande do Sul, como estilo ou padrão
Guaíba:
Numa época em que as suas concorrentes ainda queriam fazer de tudo um pouco, a Rádio Guaíba surgiu com uma proposta nova, transmitindo notícias, esportes, música e programas culturais de muito bom gosto. Impondo um rádio ao vivo, até mesmo nos intervalos comerciais, a Guaíba teve a vantagem de gerar sempre um som limpo. Cuidando dos conteúdos e com uma técnica avançada, a Rádio Guaíba fez com que a voz de seus locutores e repórteres chegasse forte aos ouvintes, mesmo quando transmitida de bem longe. Foi assim que se construiu o padrão Guaíba, resultado do trabalho de anos e anos e realizado por muitos e muitos profissionais. Por tudo isso, a Rádio Guaíba fez escola e se transformou num marco na radiofonia brasileira.
De certa forma, este novo parâmetro introduzido pela Guaíba
recupera um pouco das pretensões culturais da elite porto-alegrense comuns às
sociedades radiofônicas da década de 1920. Deste modo, logo após o discurso de
Pasqualini, encerrado com a garantia de que a emissora será “uma voz a serviço
do Rio Grande”, a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, sob a regência do
maestro Pablo Komlos, apresenta um cuidadoso repertório com trechos mais
conhecidos de peças eruditas. Na sequência, Yara Bernette, uma das mais
importantes pianistas do país em todos os tempos, interpreta trechos de obras
de Wolfgang Amadeus Mozart, Johann Sebastian Bach, Ferruccio Busoni, Camargo
Guarnieri, Claude Debussy, Franz Liszt e Frédéric Chopin. Encerrando esta “noitada
de arte”, como define o Correio do Povo
no dia seguinte, o Coro Orfeônico Júlio Kunz, da Sociedade Aliança de Novo
Hamburgo, faz a vocalização do Boi
Barroso, trilha musical que começa a ser conhecida como a assinatura sonora
da Rádio Guaíba.
Apresentação da Orquestra Sinfônica de Porto Alegre na
inauguração da Rádio Guaíba (30 de abril de 1957)
O Guarani,
com a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre, sob a regência do maestro Pablo
Komlos (30 de abril de 1957)
Fonte: Acervo particular de Flávio Alcaraz Gomes.
A pianista Yara Bernette (30 de abril de 1957)
Fonte: Acervo particular de Flávio Alcaraz Gomes.
Boi
Barroso, com o Coro Orfeônico Júlio Kunz, da Sociedade Aliança de Novo
Hamburgo (30
de abril de 1957)
Primeira apresentação da trilha musical que identifica a Rádio
Guaíba.
Fonte: Acervo particular de Flávio Alcaraz Gomes.
Primeira rádio do Rio Grande do Sul gestada dentro de uma
empresa dedicada ao jornalismo, a estação da família Caldas tem a sua
personalidade definida com cuidado, gerando o chamado estilo Guaíba. Tudo
consequência de um trabalho em que interferem diversos profissionais. O diretor
técnico, Homero Carlos Simon, garante uma qualidade de som cristalino que, já
nas transmissões iniciais, diferencia a emissora das demais. Esta particularidade
é ressaltada pelo padrão de voz, algo impostado, mas de extrema correção e
clareza na pronúncia, definido por Jorge Alberto Mendes Ribeiro, o responsável
pela área artística da rádio. O assistente da direção de broadcasting, Osmar Meletti, junto com o seu auxiliar Fernando
Veronezi, aproveita também esta vantagem competitiva na programação musical,
baseada em comedidas orquestrações, bem ao gosto de Breno Caldas. Outro fator,
ainda, serve para reforçar a sobriedade das irradiações: todos os comerciais
são lidos ao vivo, com a Guaíba negando-se a aceitar spots e jingles. Assim,
na tabela de preços da ZYU-58 vai constar, além do valor dos reclames, a frase
“A Rádio Guaíba não aceita anúncios gravados”, o que causa um impacto nas
agências da época, como registra o então diretor comercial, Flávio Alcaraz
Gomes, no 15° aniversário da emissora:
A Rádio Guaíba automaticamente ficou afastada das grandes verbas de propaganda e inúmeros experts de Porto Alegre, Rio de Janeiro e São Paulo não nos deram mais de dois meses de existência. Apesar de tudo, o bom gosto de nossa programação, a alta qualidade de nosso som, que logo se consagraria como o famoso som local da Guaíba, e o impecável padrão de nossos locutores fizeram com que, quebrando todos os tabus, a Guaíba fosse conquistando o seu lugar ao sol e galgando, um a um e a duras penas, os degraus de uma liderança nacional hoje inconteste.
Quando de sua inauguração, não podendo fugir ao espetáculo
radiofônico ainda em voga, a Guaíba organiza, mesmo assim, uma programação
diferenciada. Baseando-se em conceitos ouvidos de Jesuíno Antônio D’Ávila, anos
antes diretor da Farroupilha, e influenciado pelo rádio europeu e
norte-americano, Flávio Alcaraz Gomes cria atrações como Trabalhando com Música, inspirado no Travaillant en Musique, da Radiodifusion Française, e Dê Asas à sua Inteligência, um quiz show réplica do The $64,000 Question, atração televisiva
da Columbia Broadcasting System, dos Estados Unidos. Na dramaturgia, o destaque
fica para o Grande Teatro Orniex, dirigido
por Jorge Muccilo, nos domingos, às 21h, encenando, por vezes, clássicos da
literatura, como Moby Dick, de Herman
Melville. O final de tarde, de segunda a sexta, é, no entanto, das crianças,
com os programas Histórias do Mestre
Estrela, às 17h30, com Antônio Gabriel de Moura Coelho interpretando o
personagem-título, e o Teatrinho Infantil
Cacique, às 18h05, uma parceria com a revista Cacique, então publicada pela
Secretaria Estadual da Educação. Como resultado, segundo Flávio Alcaraz Gomes,
a rádio atinge a fatia de público pretendida:
O veredito popular consagrou, de imediato, a Guaíba como uma emissora sóbria, noticiosa, musical e herdeira das tradições de sua empresa-mãe, respeitável. O fato de emendar permanentemente duas músicas e de não veicular os estridentes jingles e spots atribuiu-lhe audiência cativa entre as elites.
Em 4 de outubro de 1957, a Guaíba, em um feito tecnológico para a
época, capta o sinal do Sputnik, o primeiro satélite artificial da história,
lançado horas antes pela União Soviética. A transmissão daquele bip-bip marca,
fora a audácia técnica do engenheiro Homero Carlos Simon, o início de uma série
de pioneirismos da rádio neste campo. No ano seguinte, chave para compreender o
sucesso da emissora em termos de notícias e programação esportiva, ocorre a
irradiação do Campeonato Mundial de Futebol, realizado na Suécia, e, um pouco
depois, a cobertura das eleições estaduais. Na transmissão do título
conquistado pela seleção do Brasil, Flávio Alcaraz Gomes, com o apoio do
diretor técnico da Guaíba, introduz o uso de transmissores em single side-band (SSB), contando com a
estrutura da Postes Télégraphes et Téléphones, de Berna, na Suíça. Por sua vez,
anunciando com precisão e de forma antecipada o resultado do pleito para o
governo do Rio Grande do Sul, a equipe comandada por Amir Domingues faz a
primeira apuração paralela da história do rádio brasileiro. Com o fim do
radioteatro da Guaíba no início dos anos 1960, a ZYU-58 adota o
formato música-esporte-notícia em sua programação, no que também é uma das
pioneiras no país.
Correspondente
Renner anuncia o lançamento do Sputnik, primeiro satélite artificial da
Terra (outubro de 1957)
Fonte: Acervo particular de Flávio Alcaraz Gomes.
Que Maravilha, Ferraretto. Nunca tinha ouvido a maioria das gravações. Muito obrigado.
ResponderExcluirMeu querido, obrigado.
Excluirespetacular. Guaiba, sempre, eternamente!
ResponderExcluirAgradeço a mensagem.
ExcluirQuanta saudade! A família toda de ouvido colado no rádio.
ResponderExcluirGuaibeira desde 1957!
Lisara, ficamos felizes por termos provocado esta recordação.
ExcluirQue cousa maravilhosa!!! Que saudade!!! eu tinha 5 anos e
ResponderExcluirmorava em Vacaria,meu pai com seu radio na cozinha do fogão a lenha e família com ouvidos atentos. Obrigada.