Pery e Estelita: o surgimento do radioteatro gaúcho
2005
Luiz Artur Ferraretto

É setembro de 1999 e, no apartamento acanhado em pleno centro do Rio de Janeiro, a dona Esther Daniotti, com seus 80 e muitos anos, como prefere definir a idade, ainda olha com o mesmo carinho das décadas de 1930 e 1940 a caixa de onde transbordam lembranças e dezenas de cartas de ouvintes da PRH-2 – Rádio Sociedade Farroupilha, de Porto Alegre. Não só de apreciadores. O que mais atesta o sucesso dela, que ninguém conhecia pelo nome de batismo, são as folhas amareladas, algumas manuscritas, outras datilografadas, escritas por enfurecidos donos de cinema de toda a Região Sul. Também pudera, a grita é geral. Aos domingos à noite, o Teatro Farroupilha, liderado por ela, a Estelita Bell, e por seu marido, o Pery Borges, bate com vantagem qualquer outro entretenimento. É a nossa segunda entrevista, já que, um pouco antes, havíamos conversado por telefone. O apartamento – pequeno, contrastando com a enorme popularidade dela e do marido décadas antes – não me sai da memória.

Pery e Estelita apresentam-se no quarto aniversário da Rádio Farroupilha (1939)
Fonte: Acervo particular de Estelita Bell.

Dona Esther se foi este ano, ganhou algumas notas nos jornais e até, por ser atriz do elenco da Rede Globo de Televisão, menção no Jornal Nacional. Se fosse há 70 anos, sua morte comoveria milhares de pessoas. A dupla Pery e Estelita era, então, a atração mais famosa do rádio do sul do país. Nas décadas seguintes, ainda brilharia ao microfone da Mayrink Veiga, no Rio de Janeiro.

Natural de Jaguarão, a 380 km de Porto Alegre, Luiz Pery Borges entra para a Companhia Procópio Ferreira em 1932, como ponto, quando o grupo teatral do maior ator do país na época fazia temporada na capital gaúcha. Três anos depois, casa-se com a carioca Esther Daniotti, que, substituindo o sobrenome do pai pelo da mãe, a atriz Renée Bell, transformara-se em Estelita Bell. Naquele mesmo 1935, no dia 29 de novembro, radicando-se no Rio Grande do Sul, estreiam ao microfone da Rádio Difusora Porto-alegrense com sketches. O cenário radiofônico dos anos 1930 permite que, sem sair da PRF-9, de Arthur Pizzoli, os dois estreiem também na PRH-2, da família Flores da Cunha, logo em seguida. No dia 6 de janeiro de 1936, Pery e Estelita passam, então, a se apresentar na Difusora, às segundas, quartas e sextas, enquanto, na Farroupilha, aparecem às terças, quintas e sábados. Meses depois, graças ao sucesso obtido pela encenação de trechos da vida de Jesus Cristo, durante a Semana Santa, Luiz Guerra Flores da Cunha contrata a dupla com exclusividade.

Boa parte do sucesso da PRH-2 pode ser atribuído ao trabalho de Pery e Estelita, em especial pela criação do Teatro Farroupilha em 1937, o segundo programa do gênero lançado no país, como lembraria seis anos mais tarde o jornal Diário de Notícias:

Quando da fundação do atual conjunto de Pery e Estelita, só existia, no Brasil, um teatro do mesmo gênero, dirigido por Manoel Durães, em São Paulo. Em 1937, então, surgiu o Teatro Farroupilha e, logo após, o Teatro nos Ares, da Mayrink Veiga.
A iniciativa de apresentar uma peça inteira foi do diretor da PRH-2, Arnaldo Ballvé, que sugeriu a ideia à dupla dentro das comemorações programadas pela Farroupilha para a Semana da Pátria de 1937. A escolha recaiu sobre Deus lhe pague, de Joracy Camargo, também da Companhia Procópio Ferreira, encenada, pela primeira vez, cinco anos antes. A denominação do programa surgiu quase por acaso, como contaria Estelita Bell, naquela tarde de 1999, folheando suas recordações:

– Ninguém cogitou de dar um nome mais geral para a apresentação de Deus lhe pague. Na hora, o Antonacci Rabello, que era o locutor, é que batizou: “Está no ar, agora, o Teatro Farroupilha”. Na hora! São destas coisas da vida. Da vida e do rádio da época.

Conforme um anúncio comemorativo do Café Carioca, à época patrocinador do Teatro Farroupilha, no sexto aniversário do programa, em 1943, a dupla Pery e Estelita já contabiliza um saldo de 278 peças apresentadas, a maioria – 180 – comédias. Predominam ainda os textos nacionais – 173. No total, parcela significativa – 128 – é inédita no Rio Grande do Sul, sendo 47 obras nunca antes encenadas no país. Seis anos antes, em 1939, a PRH-2 registra nas noites de domingo, graças ao radioteatro, um público de 23 mil ouvintes em Porto Alegre, aproximadamente 10% da população da capital gaúcha na época.

De 1937 a1945, a rotina de produção do Teatro Farroupilha não se altera. Pery Borges encarrega-se das adaptações, por vezes selecionando obras de escritores consagrados – O Guarani, de José de Alencar, encenada em 6 de janeiro de 1940, é um exemplo – ou em evidência na época – caso do norte-americano John Steinbeck e do seu Noite sem lua, livro radiofonizado em 4 de abril de 1943.

Apresentação de O Guarani, adaptação de Pery Borges para a obra de José de Alencar
(setembro de 1938)
Fonte: Acervo particular de Estelita Bell.

Trecho do roteiro de O Guarani (6 de janeiro de 1940)
Fonte: Acervo particular de Estelita Bell.

Roteiro pronto, as cópias são datilografadas com o auxílio de papel carbono e distribuídas ao elenco. Cada ator ou atriz tem, então, alguns dias para estudar o seu papel. Em paralelo, Pery Borges, com o auxílio dos técnicos em sonoplastia, acerta as trilhas musicais e os efeitos sonoros necessários. Nos finais de semana, à tarde, ocorrem os ensaios, em geral dirigidos por Estelita Bell. O resultado do trabalho pode ser conferido nas noites de domingo.

Na PRH-2, Pery e Estelita trabalham durante nove anos e três meses. Seu sucesso radiofônico permite que passem algum tempo em turnê pelos teatros do Rio Grande do Sul. Na sequência, transferem-se para o Rio de Janeiro, onde integram o cast da Rádio Mayrink Veiga. Os dois voltam ao estado, em 1950, durante uma breve temporada na Gaúcha, por iniciativa de Cândido Norberto Santos. No entanto, para o público do estado, a atuação da dupla fica marcada pelo Teatro Farroupilha, apresentado nas noites de domingo.
É este mesmo Teatro Farroupilha que desfila frente aos olhos da dona Esther Daniotti na tarde de um dia perdido de 1998, atendendo à curiosidade do pesquisador e sendo, de novo, Estelita Bell, pseudônimo que, em um dia também perdido, o grande ator e diretor Procópio Ferreira definiu:

– Fica meio cantora de tango, mas serve!


Estelita Bell
Entrevista realizada por Luiz Artur Ferraretto em 14 de julho de 1999.

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