Um Perfume do Passado exalado pelas ondas do rádio
2021
Elisa Kopplin Ferraretto

Roteiros dos 117 programas Perfume do Passado (final dos anos 1930)
Fonte: Acervo de Estelita Bell.

Pery Borges e Estelita Bell, criadores do radioteatro no Rio Grande do Sul, fizeram enorme sucesso ao microfone da Rádio Farroupilha, durante sete anos, com o Teatro Farroupilha. Mas a produção da Dupla de Ouro – como eram chamados carinhosamente pelos ouvintes – em quase uma década de atuação na emissora não se limitou a esse programa. Além das 365 peças de três atos encenadas na atração dos domingos à noite, foram responsáveis por 735 esquetes, centenas de crônicas e monólogos para audições de quartos de hora e também por outras atrações. Uma delas foi Perfume do Passado, transmitido todas as segundas, quartas e sextas-feiras.

Na noite de 2 de maio de 1938, Pery anuncia:

– Ouvintes da PRH-2, boa noite. Eu não sei se alguém já chamou a saudade de “o perfume do passado”. Há milhares de definições por aí e nenhuma bastante clara para significar o “delicioso pungir do acerbo espinho” do poeta. Estou que a própria palavra eloquente, que se gaba de intraduzível, é ainda bem inexpressiva diante da delicadeza e, às vezes, da amargura do sentimento a que serve de nome.

Entra Estelita interpretando a Canção da Saudade, que ficou famosa na voz de Vicente Celestino.

Saudade palavra doce

Que traduz tanto amargor

Saudade é como se fosse

Espinho cheirando a flor.

Saudade, ventura ausente,

Um bem que longe se vê,

Uma dor que o peito sente

Sem saber como e por que

Volta Pery:

– Perfume do passado! As ondas hertzianas vivem cheias desse perfume, pela execução inteligente de seus programas. Chamam-nos de vários nomes: Hora da Saudade, Recordar é Viver, Naquele Tempo... PRH-2 e seus ouvintes desde este instante o terão sob o romântico apelido de Perfume do Passado! Quero que a nossa saudade seja perfume, para que a sintamos suavíssima, sem lágrimas nos olhos, sem aperto no coração, sem pena nem remorsos, mas apenas com saudade.

Logo depois, anuncia a música Amor Perfeito, interpretado pela orquestra da PRH-2, regida pelo maestro Salvador Campanella:

– A nossa caixa de música vai abrir-se. Vamos sentir, subindo como um perfume, as notas musicais de uma página do passado.

E arremata após o final da execução:

– O maestro Campanella e seus colegas nos fizeram ouvir uma canção que talvez fizesse sonhar muita cabecinha linda, hoje embranquecida, nos serões e saraus daquele tempo. Mas vamos dar a palavra ao Ruy, um instante. Depois voltamos às nossas recordações.

Logo após os reclames comerciais lidos pelo locutor, começam as histórias.

– Voltemos à rua Venezianos, numa noite de maio há 25 anos, entre o alarido da garotada travessa e a cantoria ingênua das moças de então. Entre a roda travessa dos guris e a roda alinhada das meninas, um lampião de querosene. Luz mortiça, sonolenta, piscando como uma criança com sono. E, sob ele, mudo e quedo, o vulto de um rapaz... horas a fio... e lá, a mais de 20 metros, no quadro escuro de uma janela, uma cabecinha mal distinta. Eram os amorosos do tempo. Toda noite, aquela adoração muda... Para cobrar o silêncio resignado daquela afeição, altas horas, a mudez do bairro era despertada pela voz, nem sempre harmoniosa, do trovador enamorado. Ou então um grupo de amigos, boêmios de alma enluarada, dizia a Julieta o amor de seu Romeu, pela voz harmoniosa dos violinos.

E volta a orquestra, desta vez com Estrela Dalva.

Assim vai seguindo a noite de estreia de Perfume do Passado, que finaliza com um pedido de Pery aos ouvintes:

– A iniciativa deste programa está realizada. Fica aqui o seu primeiro passo. Telefonem, escrevam, dizendo se ele merece o vosso acolhimento, ou quais as suas falhas. Perfume do Passado quer acordar nos velhos uma saudade boa e mostrar aos moços as belezas e os encantos daquela época. Uns e outros podem colaborar conosco, enviando-nos músicas antigas, canções e anedotas de então, lembrando feitos e acontecimentos, apontando tipos que estejam quase esquecidos... Tudo que se viveu naquele tempo e que hoje chega até nós, suavemente, como um perfume do passado!

E os ouvintes telefonam, escrevem, mandam suas histórias, de todos os cantos do Rio Grande. Porque sim, Perfume do Passado mereceu o acolhimento do público e conquistou para Pery e Estelita uma nova legião de fãs. No total, foram ao ar 117 edições do programa. 


Caderno no qual Pery Borges fazia anotações e guardava recortes para o Perfume do Passado
Fonte: Acervo de Estelita Bell.

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